segunda-feira, 27 de abril de 2009

Filmografia de Marguerite Duras - comentada por Mauricio Ayer

India Song (1974) França, 120 min, cor

Direção: Marguerite Duras
Produção: Sunchild, les Films Armorial, S. Damiani, A. Valio-Cavaglione
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Bruno Nuytten
Som: Michel Vionnet
Música: C
arlos d’Alessio, Beethoven
Edição: Solange Leprince
Atores: Delphine Seyrig (Anne-
Marie Stretter), Michael Lonsdale (Vice-Cônsul), Claude Mann (Michael Richardson), Didier Flamand (Convidado dos Stretter), Mathieu Carrière (Jovem Adido), Vernon Dobtcheff (George Crawn), Claude Juan (Um Convidado), Satasinh Manila (Voz da Mendiga)

As pessoas às vezes dizem que minha obra é feita como a música é feita. Se eu posso ter uma opinião, eu acho que é verdade. Pelo menos para India Song é verdade.(Marguerite Duras)

É a história de um amor, vivido nas Índias, nos anos 30, numa cidade superpopulosa às margens do Ganges. Dois dias dessa história de amor são evocados. A estação é a da monção de verão. Quatro Vozes – sem rosto – falam dessa história.
As Vozes não se dirigem ao espectador ou ao leitor. Elas são de uma total autonomia, falam entre si. Não sabem que são ouvidas. As Vozes conheceram, leram, a história desse amor há muito tempo. Algumas se lembram melhor que outras. Mas nenhuma se lembra completamente, e, tampouco, nenhuma a esqueceu por completo. Não se sabe em nenhum momento quem são as Vozes. No entanto, pela maneira que cada uma tem de se e
squecer ou de se lembrar, elas se fazem conhecer mais do que por sua identidade.
O enredo é uma história de amor imobilizada na culminância da paixão. Em torno dela, uma outra história, a do horror – fome e lepra mescladas na umidade pestilenta da monção – imobilizada também num paroxismo cotidiano.

A mulher, Anne-Marie Stretter, esposa de um embaixador da França nas Índias, agora morta – seu túmulo está no cemitério inglês de Calcutá –, como que nasceu desse horror. Ela fica em meio a isso com uma graça onde tudo se abisma, num inesgotável silêncio. Uma graça que as Vozes precisamente tentam rever, porosa, perigosa, e perigosa também para algumas das Vozes.
Ao lado dessa mulher, na mesma cidade, um homem, o Vice-cônsul da França em Lahore, em desgraça em Calcutá. No seu caso, é por sua cólera e pelo assassinato que ele se une ao horror indiano.
Uma recepção na Embaixada da França terá lugar – durante a qual o Vice-cônsul maldito gritará seu amor por Anne-Marie Stretter. Isto, diante dos olhos da Índia branca. Depois da recepção, ela irá às ilhas da foz do Ganges pelas estradas do Delta.

India Song é um filme central na obra de Duras e representa a culminância de décadas de trabalho como escritora, dramaturga e diretora. Sem dúvida, é a obra que reúne mais referências a outras de suas obras, e em que ela consolida um modo totalmente particular de fazer cinema, em que os vários elementos que constituem a imagem audiovisual (como luz, enquadramento e movimentos de câmera, gestos e movimentos de atores, música, sonoplastia etc.) são agenciados como numa orquestração musical, em seus ritmos, encontros e desencontros, fusões e contrastes. Essa estrutura complexa, ao mesmo tempo sensual e terrível, permite a Duras construir o que seria um exemplo contemporâneo de uma tragédia – no sentido clássico da palavra, como no teatro grego antigo.

Um herói (o Vice-cônsul) realiza sua falha trágica ao apaixonar-se por Anne-Marie Stretter, que não somente é a esposa de seu superior hierárquico, mas principalmente é uma mulher que não se pode possuir, uma mulher que é de todos, que dá seu amor a quem queira. Toda a chamada “Índia branca”, a classe colonial, já esteve com ela; ao Vice-cônsul, no entanto, que “nunca amou ninguém”, este amor é impossível, mas ainda assim ele se entrega a ele em plena loucura.
O escândalo de seus gritos na cena do baile revela a sua “desmedida” (a “hybris” da tragédia grega), sua não adaptabilidade a um mundo em que todos se habituam – habituam-se ao calor insuportável, ao convívio com a degradação humana. Seus gritos, finalmente, lançam no centro da cena a realidade decadente dessa classe colonial que se diverte em bailes e em comentar a vida alheia “do lado de cá” das grades da Embaixada, enquanto que “do lado de lá” uma multidão de miseráveis e leprosos se amontoa à espera das sobras desse banquete. O Vice-cônsul também escancara essa relação ao dar tiros nos leprosos da sacada de sua casa, realizando o gesto surrealista preconizado por André Breton: no atual estado de coisas, o que resta é sair às ruas e atirar na multidão.

Dionys Mascolo, importante intelectual e ativista francês, que é também pai do filho de Marguerite e que grava uma das vozes de India Song, apresenta em texto de rara beleza uma síntese o que seria esse filme que se faz como uma música:

“Essa tragédia cinematográfica é integralmente construída como uma composição musical (…). Todo o filme, inclusive a imagem, é escrito como uma partitura. São tantas as suas partes: as imagens, seu enquadramento, os cenários onde são localizadas ou os que deixam à margem; os movimentos de câmera (as alternâncias de mobilidade e imobilidade); os movimentos no plano (coreografia); os gestos expressivos (andamento dos atores, dirigidos como músicos de orquestra); a própria música – as músicas na verdade, uma é exterior, a outra não; os sons (os pássaros, o ruído cósmico do mar) dos quais quaisquer ruídos realistas são excluídos: nesse aspecto o filme é mudo; as vozes por fim: as vozes “presentes” dos oficiantes; vozes atemporais que tanto comentam o evento evocado na imagem à maneira de um recitativo, e cujos encantamentos permitem a passagem incessante das fronteiras do tempo, quanto meditam sobre a ação realizada; voz da “mendiga” enfim, presente-ausente – eterna, pois que é a inocência e a infelicidade sempre sobrevivente do mundo. Toda a parte central do filme (“a recepção”) é uma seqüência, agenciada com um prodigioso sangue-frio, de entradas, saídas, perguntas, respostas, olhares e gestos, de chamados e anúncios, de música e gritos, que faz subir como um mar a intelecção sem remédio das coisas, assalto inquietante, marcado pela serenidade mortal com a qual se encadeiam alguns golpes, como as estocadas de espada de um toureiro. É justamente de morte que se trata, mas definitiva e total: da própria esperança.”
Como diz Nietzsche, a tragédia tem origem no espírito dionisíaco da música, mas se apresenta ao ganhar um
a forma e uma imagem (apolíneas) de um mito. É exatamente com isso que lidamos em India Song.

Détruire, dit-elle (Destruir, disse ela) (1969) França, 90 min, p&b

Direção: Marguerite Duras
Produção: Ancinex, Madeleine Films
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Jean Penzer
Som: Luc Berini

Edição: Henri Colpi
Atores: Nicole Hiss (Alissa Thor), Catherine Sellers (Elizabeth Alione), Michael Lonsdale (Stein), Henri Garcin (Max Thor), Daniel Gélin (Bernard Alione)

Dois homens se encontram e conversam todos os dias num hotel de campo. Um deles, Max Thor, que está “em vias de se tornar um escritor”, observa Elizabeth Alione, uma mulher que se recupera de um aborto, e todos os dias se deita ao sol no gramado, com um livro que nunca lê. Quando Alissa, a esposa de Thor, chega ao hotel, encontra Stein e inicia com ele uma relação adúltera, consentida pelo marido. O grupo aproxima-se de Elizabeth, e ela vive simultaneamente atração e pavor por Alissa, que quer levá-la à floresta, onde os limites e convenções sociais estão suspensos. A loucura se infiltra nos diálogos, que passam a insinuar sentidos compreensíveis apenas aos personagens, mas inacessíveis ao espectador, criando uma atmosfera de angústia, em que a qualquer momento algo terrível pode acontecer.

O filme é uma resposta direta de Marguerite Duras às experiências vividas em Maio de 1968. Questionada sobre ser esta uma obra política, ela respondeu: “[Michel] Foucault acha que sim”. Entende-se então que a política aqui é aquela que o filósofo francês apresenta como micropolítica, esses vetores de poder e resistência que atravessam os corpos, a incorporação da loucura pela razão, a ruína dos valores morais, a ética do desejo. Duras descreve os eventos de maio em Paris como uma loucura coletiva, que se traduz nesse desejo de destruição, e a iminência de que o mundo, a cultura, o cinema, tudo venha abaixo: “o amor corria pelas ruas”, “não sabemos pra onde vamos, mas vamos”.

Césarée (Cesárea) (1979) França, 11 min, cor

Direção: Marguerite Duras
Produção: Les Films du Losange
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Pierre Lhomme
Som: Michel Vionnet

Música: Amy Flamer
Edição: Geneviève Dufour
Voz: Marguerite Duras

Em Césarée, vemos as estátuas do jardim das Tuilerias, diante do palácio do Louvre, em Paris. A voz de Marguerite Duras entoa a história, ou uma espécie de recitativo em alusão à história do amor impossível do imperador romano e da rainha dos judeus. Ela é “repudiada por razões de Estado”, o Senado romano avalia o perigo deste amor e o rechaça. “Restou o lugar”, diz Duras, e a visão das estátuas – enormes em sua perenidade de pedra, ao lado de pessoas comuns que por ali transitam – infiltra no tempo cotidiano uma dimensão mítica, universal.
Trata-se de um primeiro experimento de Duras em sobrepor dois tempos inconciliáveis, o da banal vida cotidiana de Paris e o tempo do amor. Este ressoa inevitavelmente no lugar onde foi vivido; basta ter olhos e ouvidos para captar o recado da pedra.

O povo judeu é, de fato, uma presença constante nos livros e filmes de Marguerite Duras. Em primeiro lugar, é o povo da palavra, das sagradas escrituras, do Velho Testamento, que Duras considera como o “Texto dos textos”. Em segundo lugar, é o povo do sofrimento, de uma dor sagrada que o torna digno de um respeito quase religioso. Se em Césarée os judeus são situados no tempo de opressão pelo Império Romano, Aurélia Steiner (Melbourne) (1979) e Aurélia Steiner (Vancouver) (1979) têm lugar no tempo contemporâneo, do holocausto imposto pelos nazistas aos judeus.


Aurélia Steiner (Melbourne) (1979) França, 35 min, cor

Direção: Marguerite Duras
Produção: Paris Audiovisuel
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Pierre Lhomme

Som: Michel Vionnet
Edição: Geneviève Dufour

Voz: Marguerite Duras

Aurélia Steiner (Melbourne) é constituído basicamente de travellings capturados ao longo do rio Sena, em Paris. Os ritmos da geometria das pontes, as texturas da luz nas águas e planos da catedral de Notre-Dame criam uma série de jogos visuais.

Agatha ou les lectures illimitées (Agatha ou as leituras ilimitadas) (1981) França, 90 min, cor

Direção: Marguerite Duras
Produção: Berthemont, I.N.A, Des femmes filment
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Dominique Lerigoleur, Jean-Pierre Meurisse
Som: Michel Vionnet
Música: Valsas de Brahms
Edição: Françoise Belleville
Vozes: Marguerite Duras e Yann Adréa
Atores: Bulle Ogier e Yann Andréa

Um homem e uma mulher, irmão e irmã, rememoram os momentos de seu amor incestuoso, antes de se separarem definitivamente. “Tudo é tão confuso”, diz ela, “sim, acho que vou embora devido à força desse amor tão terrível que temos um pelo outro” (Agatha, p. 11). No diálogo, vemos construir-se o filme de um passado irrecuperável, que se faz presente pela palavra.

O incesto é também uma forma de amor que Marguerite afirma ter vivido. Ela estava na França quando seu irmão, que permanecera na Indochina com a mãe, morreu durante a guerra, por falta de medicamentos. O desespero com que recebeu a notícia – ela conta que batia a cabeça contra a parede, queria se matar – a convenceu de que havia amado seu irmão. A partir dessa experiência, ela reflete que “o incesto é a coincidência entre o amor e o laço de parentesco. Todo amor, na realidade, busca recuperar esse laço fundamental”.

O filme incorpora no elenco, pela primeira vez, Yann Andréa Steiner, algumas décadas mais jovem que ela, mas que se torna o seu companheiro nos últimos dezesseis anos de sua vida. Ele voltará à tela em seu próximo filme, L'homme atlantique.

L’homme atlantique (O homem atlântico) (1981) França, 42 min, cor e p&b

Direção: Marguerite Duras
Produção: Berthemont, I.N.A, Des femmes filment
Roteiro: Marguerite Duras

Fotografia: Dominique Lerigoleur, Jean-Pierre Meurisse
Som: Michel Vionnet
Música: Brahms
Edição: Françoise Belleville
Voz: Marguerite Duras
Ator: Yann Andréa

A voz de Marguerite Duras fala a alguém, indica-lhe como num roteiro os gestos que deve cumprir, e assim quando percebe, fez-se o cinema. Diante de nossos olhos, a tela negra. Duras busca acessar aquilo que chama de “voz interior da leitura”, e evidenciar diante dos nossos olhos algo que é anterior à própria visão de um filme: sua criação interna, a imaginação antes da imagem.

Cerca de dois terços da duração do filme se passam com a tela negra, entrecortada por inserções de planos gravados na casa de Duras, na Normandia, diante do mar. Essas imagens, com simples mas ardilosos jogos de espelho ou o movimento perpétuo das ondas no mar.

Trata-se, portanto, de uma das obras mais radicais de Marguerite Duras em sua desconstrução do cinema. É quase uma instalação audiovisual que invade a sala de projeção, sua tela, um limite além do qual não é possível ultrapassar sem eliminar completamente o cinema do cinema.

Ao mesmo tempo, Marguerite estabelece o contraste preciso que ressalta a estrutura da relação entre o cinema e a literatura. Ela dizia que “o cinema golpeia de morte sua descendência, a imaginação”, ou seja, ao propor uma imagem ao espectador elimina suas infinitas possibilidades de imaginar a cena. Estas são próprias da leitura, da literatura, e ela traz para o filme de maneira que só seria possível numa obra cinematográfica.

Afinal, é ainda cinema este filme? A resposta só pode ser paradoxal: é e não é, ou ainda, já não é cinema e ao mesmo tempo não pode ser outra coisa senão cinema, sem possibilidade de uma decisão definitiva que não se paute numa concepção prévia e fechada do que seja essa arte.

Les enfants (As crianças) (1984) França, 90 min, cor

Direção: Marguerite Duras, Jean Mascolo, Jean-Marc Turine
Produção: Berthemont, Ministério da Cultura (FRA)
Roteiro: Marguerite Duras
Fotografia: Bruno Nuytten
Som: Michel Vionnet
Música: Carlos d’Alessio
Edição: Françoise Belleville
Atores: Axel Bougosslavsky (Ernesto), Daniel Gélin (Enrico), Tatiana Moukhine (Natasha), Martine Chevalier (Nicole), André Dussollier (Diretor da escola), Pierre Arditi (Jornalista)

Ernesto é um menino, filho de imigrantes (mãe russa e pai italiano), que mora num subúrbio pobre de Paris. Seu desenvolvimento incomum (aos 12 anos tem o aspecto de um homem de 40) a princípio não chama a atenção. Ele encontra um livro com um furo redondo no meio e, sem nunca ter aprendido, o lê – é a história de reis judeus. Um dia diz a seus pais que não voltará à escola, pois ali “ensinam coisas que ele não sabe”. Temendo as penas legais por não manter o filho na escola, os pais vão conversar com o diretor, que ainda não havia notado o tamanho incomum de Ernesto. A fala do diretor é precisa: “nenhuma criança quer ir à escola, elas são forçadas”. Ao conversar com Ernesto, no entanto, surpreende-se, não consegue convencê-lo com seus argumentos, e se torna quase um discípulo dele.

Ernesto desenvolve então seu método peculiar para saber as coisas. Ele espera na saída dos colégios para ouvir o que dizem os estudantes. Algum tempo depois: ele sabe. Esgotado o conhecimento escolar, começa a explorar as saídas de universidades, até que um dia ele consegue completar o conhecimento acumulado pela humanidade. Torna-se famoso, e um jornalista o procura, para ouvir o que ele, que tudo sabe, tem a dizer. Ele então cita o Eclesiastes: “Tudo é vaidade de vaidade” e sumariamente sentencia sobre as coisas do mundo: “Não vale a pena”.

Les enfants assinala o retorno de Marguerite Duras a uma narrativa que se pode considerar rellinear de seus primeiros romances, porém, com um enredo fantástico e alegórico. Em seguida, ela publica o romance A chuva de verão, em que desenvolve a história de Ernesto, seus irmãos e irmãs. Isto marca também o que se pode considerar como o último momento na relação de Duras com a realidade social e com a sua concepção política. Em India Song e Son nom de Venise dans Calcutta désert, a não-adaptação do Vice-cônsul a uma realidade de horror torna-se trágica quando confrontada com o amortecimento da sensibilidade da decadente sociedade colonial. Em O caminhão a tragicidade se dilui numa estrutura fragmentária e cíclica, em que já se declara a impossibilidade de uma salvação para o mundo: que ele se perca é “a única política possível”. Agora, o gesto fundamental desta figura profética de Ernesto é o gesto alegórico em que se afirma uma indiferença ainda mais fundamental: tudo é “vaidade de vaidade”.

Os pais têm algum tipo de retardo que os torna sensíveis à realidade singular de seu filho; de algum modo, eles se comunicam, sobretudo a mãe. Ela perdeu praticamente toda a memória de seu próprio passado, salvo pelo nome de um antigo amor e por uma canção de sua terra de origem. Os diálogos do filme transitam, portanto, entre o conhecimento de tudo e a ignorância absoluta – dois extremos que afinal se tocam em algum ponto em que o espectador não pode exatamente discernir. E do silêncio luminoso e lento, surgem traços de cômico que, no entanto, não chegam a se completar.


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