segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O ÚLTIMO MOJICA SEGUE EM CARTAZ

Segue em cartaz o filme Encarnação do Demônio, dando mais uma chance ao público porto-alegrense de conhecer o novo filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão.
Encarnação do Demônio é o último capítulo da trilogia iniciada em 1964 com À Meia-Noite Levarei Sua Alma e seguida por Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de 1966. Mojica levou 40 anos para concluir este projeto, que chega às telas pelo esforço do produtor Paulo Sacramento e do roteirista e diretor Dennison Ramalho. Graças ao apoio de Sacramento e Ramalho, Mojica teve à sua disposição recursos à altura de sua delirante imaginação, o que deu origem a um dos filmes mais criativos do cinema brasileiro recente. Além de José Mojica Marins, no elenco de Encarnação do Demônio estão nomes como Jece Valadão (em sua última aparição nas telas), Milhem Cortaz, Cristina Aché, Helena Ignez, Débora Muniz e Zé Celso Martinez Corrêa.

Abaixo, crítica de Francis Vogner dos Reis sobre o filme, publicada na revista eletrônica Cinética (www.revistacinetica.com.br).

O despertar da besta

O ano de 2008 entra para a história do cinema brasileiro por dois acontecimentos singulares: o primeiro foi a estréia em circuito de Andrea Tonacci com Serras da Desordem, trinta e oito anos depois de seu Bang Bang, um clássico que nunca entrou em cartaz. O segundo é o retorno de José Mojica Marins à direção, com a volta de Zé do Caixão aos cinemas fechando a trilogia iniciada há quarenta e quatro anos. Mas será que algumas mudanças inevitáveis nesses quarenta anos seriam boas ou ruins para o Zé do Caixão e José Mojica Marins? Será que o diretor conseguiria adequar seu estilo, sua visão, ao modelo de produção atual? E talvez o que mais preocupava era a seguinte questão: Zé do Caixão, depois de tantos anos, não tenderia a uma caricatura grotesca e a influência de seus atuais parceiros (o roteirista Dennison Ramalho, os produtores irmãos Gullane e Paulo Sacramento, este também montador) não descaracterizaria seu cinema em favor de um abrandamento de suas qualidades mais marcantes, hoje consideradas ainda mais toscas e infames?

Pois o surpreendente em Encarnação do Demônio é que, apesar do esquema de produção diferente e dos parceiros de personalidade forte, o cinema do diretor está intacto. Hoje, optar por um cinema eminentemente pobre e radicalmente artesanal poderia ser uma declaração que o valor do cineasta estaria somente em suas condições de produção, não na originalidade de seu olhar. Portanto, a operação realizada em Encarnação do Demônio é semelhante a de Terra dos Mortos, de George Romero, em que deixa-se, naturalmente, de lado a produção mais modesta (não poderia ser diferente, a época é outra) e se afirma o gênio do diretor. Isso dá novo vigor à potência do personagem Zé do Caixão e seu universo, assim como aconteceu com Romero e seus zumbis.

Encarnação de Demônio é consciente de que nesses quarenta anos a figura do homem de cartola ganhou variações e extrapolou os filmes, fazendo parte da cultura popular sob outras variantes. O que talvez seja mais conhecido no Brasil nas últimas décadas é a figura engraçada dos programas de TV e das aparições públicas que lança pragas e aparece cercado de suas “pombagiras”, indo na contramão do personagem cinematográfico, um cético. O outro é aquele que se fez como uma sombra e uma figura autônoma do diretor José Mojica Marins, um duplo maligno, uma maldição, em que a grande vítima era o próprio diretor. Ele seria o antagonista de seu criador em alguns de seus filmes mais radicais como Delírios de um Anormal, Exorcismo Negro e aquele que é talvez o maior filme do cinema brasileiro: Ritual dos Sádicos (ou O Despertar da Besta). Este Zé do Caixão, dentro da própria diegese desses filmes, é um personagem irreal, uma imagem, um pesadelo.

Mas o Zé do Caixão que deu fama ao diretor e origem às variações é o coveiro Josefel Zanatas, o Zé do Caixão da trilogia À Meia Noite Levarei a Sua Alma, Esta Noite Encarnarei em teu Cadáver e deste Encarnação do Demônio, que é não é só o desfecho de uma trilogia, mas um acerto de contas. Uma das cenas é um flashback do final de Esta Noite Encarnarei em teu Cadáver, em que Zé do Caixão é perseguido pela população e acaba afundando em um pântano bendizendo Deus e a cruz. Só que agora essa cena se desdobra, com Zé saindo do pântano, matando o padre com a cruz e cegando um policial. Encarnação do Demônio é ultrajante sem pés atrás e sem as soluções redentoras que os anteriores foram obrigados a se sujeitar. Essa cena, que foi feita especialmente para Encarnação do Demônio, soma-se a outras (originais) dos dois filmes anteriores, e trata de criar uma ponte com eles – além de servir como uma introdução a quem ainda não conhece a trajetória do Zé do Caixão.

Mojica Marins, com a colaboração do seu co-roteirista Dennison Ramalho, tratou de reconstruir o personagem e sua mitologia para o mundo contemporâneo, o que é formidável, pois dá vazão a uma configuração social e cultural atual com crianças de rua, o poder paralelo dos policiais e a cultura sado-masoquista (não só do cinema). O filme leva em conta, além do Zé do Caixão personagem cinematográfico, a figura pop que se consolidou durante essas décadas, porque agora não é só mais um criminoso, mas um ídolo, com um séquito de seguidores jovens. O anormal virou uma referência nacional, um estimulador de taras, com direito a vassalos. Depois de anos preso, em razão de seus assassinatos e torturas, sai da cadeia e retoma sua busca da única verdade que acredita: a continuação do seu sangue por meio da mulher superior capaz de gerar seu filho perfeito. Só que o mundo que ele encontra pode ser tão ou mais perverso do que ele, e Zé identifica a saúde do mundo por intermédio do estado das crianças, cheirando cola ou sendo assassinadas por policiais. O homem comum, objeto de seu desprezo, continua covarde, supersticioso e servil.

Ritual dos sádicos

Todas essas qualidades (novas e antigas) só teriam força sob uma forma que lhes desse sentido além do choque que elas em si já representam. Apesar de todo o aparato, o que é realmente escandaloso é a impossibilidade de Mojica ser convencional. Não é nem uma escolha, mas uma condição. Esse universo não pode ser visto de modo brando, conciliado ou maquiado pelo requinte da tecnologia e do dinheiro do qual o diretor dispôs dessa vez. Como em todos os seus outros trabalhos, há uma brutalidade na decupagem, em que os planos e a sua sucessão não têm exatamente um objetivo funcionalista de dar prosseguimento à história ou construir uma situação de desenvolvimento clara e convincente. Essa disfunção torna suas cenas às vezes muito cruas, como o espancamento de Cristina Aché pelos policiais; a briga no bar da favela; ou as seqüências da perseguição dos policiais e do parque de diversão.

Se as cenas de torturas e sangue, por exemplo, escapam ao fetichismo (que é a sensação da série Jogos Mortais), é porque elas não são concebidas como uma câmara de tortura para um espectador voyeur e sádico, mas como um delírio, um pesadelo. O próprio personagem/diretor seria um maestro de cenas extremas, que impressionam mais pela plasticidade e agressão, do que pela mera e simples crueldade. Cenas como a mulher saindo da barriga do porco e a cena de sexo inundada por sangue, ou mesmo o purgatório com Zé Celso Martinez, aproximam mais o diretor da parceria Luis Buñuel e Salvador Dali do que desses recentes filmes de horror de tortura, porque o horror vem pela via das imagens absurdas (e até do sarcástico), não da mera representação da dor e da psicose.

Essa integridade do diretor não sobreviveria às concessões. Os efeitos especiais, por exemplo, sejam os artesanais do passado ou os digitais de hoje, sempre obedeceram a diretrizes bem específicas. Aqui eles não se fazem com uma impressão de realidade a partir da tecnologia digital, mas (sobretudo aqueles que se utilizam do preto e branco) aproveitam as suas possibilidades gráficas pra criar cenas irreais. Tudo isso está a serviço do conceito, não de um padrão. Tanto que nem sempre interessa ao diretor o que é explícito, como quando o policial atira em uma criança: não vemos o corpo da criança, caído atrás do carro, mas somente o policial disparando a arma. Para Mojica (e também para Zé do Caixão) não seria uma atitude correta mostrar uma imagem dessas. Diferente de muito cineasta levado a sério, Zé do Caixão não é vampiro.

Encarnação do Demônio finaliza um capítulo do cinema brasileiro. Um cinema que foi motivo de vergonha, de incômodo, de aborrecimento e que lutou (e luta) para poder, efetivamente, existir. Foram-se Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira, alguns dos primeiros defensores do cinema de José Mojica Marins. Seu filme tem o falecido Jece Valadão, Helena Ignez e Débora Muniz, representantes de três extratos diferentes do cinema nacional. O senhor José Mojica Marins conseguiu o que queria, apesar das estruturas e à revelia, talvez, de muita gente (hoje uma espécie de oposição “branca”). Gente que sequer viu os filmes sabe de cor e salteado da história de que “ele foi valorizado no exterior primeiro pra depois ser visto com seriedade aqui no Brasil” – o que não é bem verdade, já que nas décadas de 60 e 70 ele foi defendido por (pouca) gente de valor. Esse papo furado (falsamente) afirmativo de que era trash e hoje é cult equivale a dizer que seu trabalho é lixo, mas que hoje tem sua graça por ser pitoresco. Existem aqueles ainda, críticos sobretudo, que tentam disfarçar o nojo “argumentando”, tão e somente, que os filmes do Zé do Caixão não são do seu gosto ou que são supervalorizados por um clubinho. O que representa uma mudança, porque depois de tanto tempo, o repudio explícito se tornou dissimulação cínica.

Pois graças a Mojica e seus colaboradores pode-se acreditar, nem que seja por um instante, que nem sempre estamos sujeitos a ciclos de fracasso. Em um ano que tivemos Cleópatra, de Julio Bressane, Falsa Loura, de Carlos Reichenbach e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci, a última parte da trilogia de Zé do Caixão tem o mérito de não ser só um retorno esperado há quatro décadas, mas um filme enorme. Encarnação do Demônio lava a alma de cinqüenta anos de cinema brasileiro.

Francis Vogner dos Reis

GRADE DE HORÁRIOS

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Quarta-feira (10 de setembro)

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Domingo (14 de setembro)

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